FREI BETTO (Texto de opinião)
Folha de São Paulo
São Paulo, quinta-feira, 23 de novembro de 2006
O mendigo da esquina
FREI BETTO
Por um lado, o Estado acolhe o pobre como cidadão e reconhece todos os seus direitos. Por outro, o abandona na vida real FINDAS AS eleições, deve agora a nação exigir de seus empregados, os políticos, urgência na reforma política. Caberá a ela livrar o Estado brasileiro de seu caráter religioso. Ora, dirão os incautos, como religioso, se o nosso Estado é laico, não confessional, digno fruto da modernidade ilustrada? Religioso não é apenas o Estado fundamentalista, no qual quem tem poder religioso possui também poder político e vice-versa. Já Marx, em "A Questão Judaica", havia percebido que a religião é a essência do Estado burguês. O que esse Estado reconhece num indivíduo que se encontra na pobreza além de sua condição formal de cidadão? A nossa Constituição Federal de 1988 ostenta orgulhosamente o título de "cidadã". Em princípio, toda a população brasileira se sente parte integrante do Estado, ainda que considerável parcela viva na miséria e tenha como consolo a renda mínima do Bolsa Família e outras modalidades de assistencialismo. Dos 190 milhões de brasileiros, 70% sobrevivem com renda mensal inferior a dois salários mínimos. Por isso, não sou contra as medidas assistencialistas, desde que provisórias e que apontem o rumo da porta de saída, de modo que o beneficiário possa ficar independente das benesses do poder público e dispor de meios para gerar a própria renda. Uma pessoa na pobreza só pode sentir-se parte do Estado se o representa como um ser superior. E nisso consiste o caráter religioso do Estado burguês. A essência da religião consiste na submissão do fiel a uma instância que o transcende, Deus. É o que ocorre ao Estado burguês, que se apresenta como instância superior e soberana que não discrimina ninguém e reconhece todos como cidadãos. Essa máscara encobre uma terrível face: a que cinde o indivíduo em dois. Por um lado, o Estado acolhe o pobre como cidadão e reconhece todos os seus direitos. Nenhum político jamais admitirá que o mendigo da esquina não tenha direito à saúde, à educação, ao trabalho e à moradia. Por outro, o Estado o abandona na vida real e não lhe assegura nenhum acesso aos direitos elementares. Esse Estado abstrato, divinizado, é o Estado de uma classe, e não de um povo. Por isso, em sua índole de Leviatã, de quem detém o monopólio da violência, jamais perde de vista o mendigo da esquina. Se ele roubar ou matar, será punido com o rigor da lei. Rigor que não se aplica aos membros da classe que o Estado efetivamente representa e defende. Todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais que outros... Esse mesmo Estado cujo braço repressivo não perde de vista o pobre, de fato o ignora quando se trata de estender-lhe o seu braço administrativo. As exigências legais lhe são impostas, porém os direitos sociais, negados. Ele que se vire para obter alimentação, saúde e educação de qualidade. Ou se contente com as migalhas que caem da mesa na forma de políticas sociais. O mendigo da esquina ignora que, aos olhos do Estado, ele é "o visconde partido ao meio", como diria Ítalo Calvino. Por isso não transforma sua impotência em potência; não se rebela, não protesta, não organiza os excluídos. Qual pecador na fila da água benta à espera da cura miraculosa, o pobre madruga na fila do SUS, da distribuição de cestas básicas, da oferta de emprego. A reforma política será um engodo se não arrancar o Estado das alturas celestiais em que se encontra, incensado pela burguesia. É preciso trazê-lo ao chão da vida, de modo que os direitos virtuais da cidadania universal se façam reais e o cidadão assuma o seu devido lugar de sujeito capaz de interagir com o poder público por meio de vias institucionais que lhe permita controlá-lo e direcioná-lo. Enquanto a reforma não vem, espera-se ao menos que o presidente Lula, que admitiu em palanque, nos comícios de 22/10, que o Estado só tem olhos para os ricos, faça seu governo destinar mais recursos para os pobres, injetando na saúde os R$ 70 bilhões/ano previstos na Constituição; na educação, ao menos 5% do PIB; e levar a efeito o Plano Nacional de Reforma Agrária, promessa de 2002, para que o Bolsa Família encontre sua porta de saída.
CARLOS ALBERTO LIBÂNIO CHRISTO, o Frei Betto, 62, frade dominicano, é escritor. É autor de, entre outras obras, "Batismo de Sangue" (Rocco). Foi assessor especial da Presidência da República (2003 - 2004).
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